Uma descoberta no Quênia oferece o primeiro “instantâneo” da coexistência pacífica entre hominídeos muito diferentes
Nuño Domínguez
Em 2021, uma equipe de paleoantropólogos descobriu algo incomum no Quênia. Eles estavam procurando fósseis humanos em sedimentos de 1,5 milhão de anos atrás, mas em vez disso encontraram a pegada de uma enorme cegonha pré-histórica, a julgar pelo tamanho de sua pegada fossilizada. Ao lado dele apareceu algo muito mais interessante: uma pegada que parecia ser humana.
Os cientistas continuaram escavando no ano seguinte, com a presença de dois especialistas em locomoção humana. Dois vestígios de pegadas paralelas apareceram, um a um metro do outro. Após mais dois anos de trabalho, os responsáveis pela pesquisa anunciaram na quinta-feira (28/11/2024) que esta é a primeira prova conclusiva de que duas espécies humanas diferentes, Homo erectus e Paranthropus boisei, coexistiram no mesmo lugar e ao mesmo tempo.
“Eles passaram por lá com uma diferença de horas, ou alguns dias no máximo”, explica Kevin Hatala, pesquisador do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva na Alemanha e coautor da descoberta, publicada na Science, uma referência para a melhor ciência do mundo, explica a este jornal. A descoberta dessas pegadas fossilizadas nos permite explorar “muitas questões-chave sobre a evolução humana e a competição entre as espécies”, ressalta o cientista.
Os humanos de hoje estão acostumados a ser os únicos no planeta, mas esse tem sido o caso há apenas algumas dezenas de milhares de anos. Normalmente, havia diferentes variantes em constante evolução. Louise Leakey, paleoantropóloga da Universidade Stony Brook, nos Estados Unidos, que liderou a pesquisa, faz uma matemática rápida: há 1,5 milhão de anos, havia pelo menos seis espécies diferentes na África. Um deles, o Homo erectus, já caminhava e corria de maneira muito semelhante à nossa, e havia chegado à Ásia.
“Restos fossilizados de Homo erectus, Homo habilis, Paranthropus boisei e possivelmente outras espécies desse período foram encontradas”, explica Leakey. “No entanto, pode haver centenas ou milhares de anos de diferença entre as camadas sedimentares em que são encontradas.” Em vez disso, “esta é a primeira vez que obtemos um instantâneo de um ambiente costeiro onde dois hominídeos diferentes caminhavam na mesma superfície” e praticamente ao mesmo tempo. “É possível que tenham visto a grande cegonha, cavalos e outros animais que também estavam na costa”, diz o cientista.
Leakey representa a terceira geração de uma família mítica de paleoantropólogos que descobriu alguns dos fósseis mais importantes da história na África. Em 1978, sua avó encontrou na Tanzânia um rastro de pegadas fossilizadas de cerca de 3,6 milhões de anos atrás, deixadas por hominídeos que já andavam sobre duas pernas e faziam coisas que pareciam tipicamente humanas, como pisar nas pegadas do que estava na frente.
A equipe analisou as pegadas quenianas com scanners tridimensionais e as comparou com centenas de pegadas deixadas por humanos modernos. Os resultados mostram que um dos rastros é tipicamente humano. É mais provável que seja o Homo erectus, a espécie mais parecida com a nossa naquela época, com uma dieta onívora e um comportamento bastante semelhante ao do Homo sapiens, aponta Hatala. As outras pegadas são de alguém que também anda ereto, mas de uma forma não tão humana, e com maior mobilidade do dedão do pé. Era um Paranthropus boisei, um hominídeo menos corpulento, com um cérebro menor que o erectus, e caracterizado por enormes mandíbulas e molares com os quais mastigava vegetais duros e fibrosos, como os gorilas ainda fazem hoje. “Dadas essas diferentes adaptações dietéticas, é possível que as duas espécies não tenham competido diretamente pelos mesmos recursos”, acrescenta Hatala.
O Paranthropus boisei foi extinto há cerca de um milhão de anos porque uma mudança no clima e na paisagem o deixou sem comida. O erectus, por outro lado, se tornaria a espécie humana que durou mais tempo neste planeta: 1,5 milhão de anos. As populações africanas desta espécie foram os ancestrais do primeiro Homo sapiens, que surgiu naquele continente há cerca de 200.000 anos. Esses sapiens deixaram a África, chegaram à Europa e lá conheceram a espécie humana local, os neandertais, com quem fizeram sexo e filhos. Até agora, a teoria da maioria dizia que os neandertais foram extintos há cerca de 40.000 anos, mas um estudo publicado este ano (2024) propõe que os absorvamos, porque todas as pessoas fora da África carregam uma pitada de DNA neandertal dentro.
As pegadas quenianas foram encontradas na bacia do Lago Turkana, no norte do país. A equipe revisou outras pegadas fósseis descobertas anteriormente nesta mesma área e encontrou mais exemplos de ambas as espécies passando muito próximas uma da outra. Os sedimentos abrangem 100.000 anos, um longo período de coexistência. “São mil perguntas sobre o que aconteceu, como eles interagiram e como sua convivência poderia ter influenciado a evolução humana”, arrisca. “Talvez uma das maiores questões a serem respondidas seja por que os dois hominídeos foram atraídos para as margens dos lagos”, acrescenta o pesquisador. “Eles eram perigosos e eram atormentados por hipopótamos, crocodilos e outros animais ameaçadores. O que quer que os atraísse para essas áreas tinha que valer a pena. Esperançosamente, combinando as pegadas com outras linhas de dados paleontológicos e arqueológicos, podemos começar a entender o que exatamente eles estavam fazendo.
William Harcourt-Smith, paleoantropólogo da Universidade de Nova York, acredita que “essa descoberta ajuda a entender a complexa história evolutiva do bipedalismo”. O trabalho acrescenta novos dados ao conhecimento de uma forma de locomoção “única” aos humanos e “altamente especializada”, que é “tão complexa e interessante quanto outras que têm sido mais estudadas, como a dieta e o desenvolvimento”, acrescenta em artigo complementar ao estudo.
O biólogo e paleontólogo Adrián Pablos, pesquisador do Centro Nacional de Evolução Humana, acredita que “a principal novidade deste estudo, além de serem pegadas até então desconhecidas, é que duas formas diferentes de pisar são observadas entre essas trilhas”. “Ambos são bípedes, com o dedão do pé abduzido [estendido] típico do bipedalismo e diferente da pegada dos chimpanzés”, ressalta.
Fonte: El País
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