Ao contrário do que na Mesopotâmia, não existem receituários e nem apenas textos que nos expliquem como era a gastronomia do Egito dos Faraós. Como eram então as celebrações gastronômicas daquela época?
Eva van den Berg
“O Egito é um presente do Nilo”, deixou escrito no século V a.C., o historiador e filósofo grego Heródoto em sua obra História. E, sem dúvida, ele tinha razão: este rio, o maio de toda África, foi um elemento essencial para o florescimento dessa antiga civilização que perduraria ao longo de mais de três milênios. Rodeado por uma extensão infinita de deserto, o Nilo foi o moto de desenvolvimento do Egito. Suas enchentes anuais deixavam no seu rastro uma camada de lodo que fertilizava as terras inundadas. Isso permitiu o desenvolvimento da agricultura, uma atividade chave nessa sociedade, não só como fonte de sustento e emprego, mas também para promover o comércio e o desenvolvimento tecnológico. Especialmente em sua impressionante zona do delta: na sua desembocadura no Mediterrâneo, o Nilo forma um dos maiores deltas fluviais do mundo, estendendo-se no triângulo formado entre o Cairo, Alexandria e Porto Saíd.
Graças a essa enorme quantidade de recursos hídricos, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), os antigos egípcios se ergueram como um dos primeiros grupos a praticar a agricultura em grande escala, cultivando alimentos como o trigo e a cevada, inclusive linho para fabricar roupa.
Ao contrário da Mesopotâmia, cujos habitantes desenvolveram um elaborado vocabulário culinário e deixaram escritos numeras receitas em tábuas de argila, não existem receituários e nem apenas textos que nos expliquem como era a gastronomia do Egito na época dos Faraós. “Temos de nos conformar com a informação iconográfica e com as escassas referências que se podem recuperar nas obras literárias. Por outro lado, a riqueza de imagens e maquetes da vida cotidiana nos mostram, com luxo de detalhes, a infinidade das técnicas culinárias”, explica o volume II da Bullipedia, centrado nas civilizações antigas.
Entre outras coisas, sabemos que todos os membros da sociedade compartilhavam a mesma alimentação básica, com diferenças apenas no relativo às quantidades, a qualidade e a variedade. Enquanto classes populares comiam duas vezes ao dia, de manhã cedo e logo ao anoitecer, as elites acrescentavam mais uma refeição ao início da tarde.
Igual que em outras sociedades campesinas ancestrais, a dieta girava em torno de algum cereal, nesse caso, o trigo, animais de criação, como: cabras, ovelhas, vacas e porcos; e alguns legumes ou verduras. “Os dois preparos sempre presentes eram o pão e a cerveja, consumidos diariamente, tanto pelo Faraó e sua família, como pelos campesinos. Ambos eram, ainda, a forma de retribuição básica para os trabalhadores”, explica a Bullipedia. Trabalhadores que, é claro, comiam carne muito menos frequência do que as pessoas de maiores status.
Na mesa dos ricos a carne era muito mais frequente, como testemunham diversas cenas de açougueiros fazendo seu trabalho. A carne de vaca era a preferida, ja que sobre o porco pesavam numerosos tabus. Talvez seja por isso que eles apareçam muito pouco nas pinturas e relevos. Segundo aponta a egiptóloga Rosa Pujol, o porco era um dos animais domésticos mais comuns do antigo Egito, mas há uma grande controvérsia sobre o seu papel como alimento. Heródoto relatou que os egípcios jamais tocavam nos porcos e muito menos os comiam, pois os consideravam animais atribuídos ao deus Set (divindade da força bruta do tumultuoso) e as forças dos tufões. Dizia o historiador grego que se um egípcio entrasse em contato de modo acidental com um porco, ele teria que submergir imediatamente no Nilo para purificar-se e que os pastores dos porcos eram menosprezados e tinham que viver separados do resto dos egípcios.
O que os egípcios gostavam muito eram as aves. Criavam gansos e patos, mas, em especial, consumiam espécies silvestres, as quais caçavam com uma espécie de bumerangue de arremesso ou com redes colocadas entre os arbustos. Também comiam peixes do Nilo, frescos, secos ou salgados, e grandes quantidades de legumes, frutas e verduras.
Eles realizavam frequentes e variadas festas comunitárias. As convocadas pelos reis eram, talvez, as mais esperadas, porque todo povo participava, e nesses luxuosos eventos que podiam se prolongar por um durante o qual o rei apresentava oferendas e sacrifícios: carnes, aves, frutas, leite, pão, cerveja, flores e perfumes… Outros banquetes homenageavam os marcos de um reinado, ou se dedicavam aos deuses. Nesse caso, eram os sacerdotes que os preparavam e cozinhavam dádivas em um espaço específico, dentro do templo, para alimentar as divindades três vezes ao dia: pela manhã, ao meio-dia e a tarde. No caso do falecimento de um faraó, preparavam-se cinco refeições diárias, três celestiais e duas terrenas. No âmbito privado, no seio das famílias particulares, havia refeições também para os defuntos, com o objetivo de que não faltassem nada para a sua outra vida. Pão, cebolas, carne, frutas, alface, grãos, vinhos, cerveja…
Embora não tenhamos receitas daquela época, é de supor que assar seguia sendo uma das técnicas principais para cozinhar. Algumas imagens nos mostram um pescado assado em um espeto, por exemplo. E eram comuns os peixes salgados, como a bottarga, que é um preparo a base das ovas dos peixes, nesse caso, a tainha. Depois de limpas, as ovas eram salgadas para logo serem prensadas sobre uma palheta. Outra coisa que se sabe é que eles faziam uns preparos doces, usando mel e outros elementos adocicados, como o fruto da alfarroba, das tâmaras, das uvas passas e o xarope, um misto consistente de xarope feito com pedaços de frutas.
Aliás, temos a receita de uma sobremesa da época: biscoitos de shayt ou biscoitos de noz-tigre. Essa receita foi encontrada no famoso papiro Ebers, adquirido pelo egiptólogo alemão Georg Ebers, em Luxor em 1873. Trata-se de um dos tratados médicos mais antigos já conhecidos, escrito em hieróglifo no ano 1550 a.C. A receita do papiro indica os seguintes ingredientes
- 0,30 l de vinho
- 0,60 l de mil
- 2,40 l de noz-tigre.
- 4,80 l de suco de alfarroba.
- 4,80l de mucilagem.
- 4,80 l de gordura de ganso.
Hoje há outra versão mais fácil de adaptar, talhada na tumba do visir Rejmire, da dinastia XVIII. Abaixo transcrevemos a receita para quem quiser saborear umas cookies do tempo dos faraós. Desfrute!
Ingredientes:
- 150 gramas de noz-tigre
- 50 gramas de tâmaras secas
- 1 copo de água
- 50 gramas de mel
- Azeite de oliva
Modo de preparo:
- Moer nozes-tigres até deixá-las reduzidas a um pó fino.
- Adicionar um copo de água e amassar.
- Amassar as tâmaras secas em um moedor e misturar a pasta fina obtida com mel até obter uma textura parecida com a compota.
- Juntar com a massa das nozes-tigres.
- Com a massa resultante modelar as peças em forma triangular com uns 50g cada, tendo o cuidado para que os biscoitos não tenham mais do que um centímetro de altura.
- Em seguida, frite os biscoitos com azeite, virando-os até ficarem dourados.
- Servir os biscoitos frios.
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FONTE: National Geographic
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