A crise vai doer nas almas, e as feridas não vão ser iguais para todos 

Por José Gameiro 

Três meses de confinamento deram-nos uma experiência inédita e uma imensidão de material para investigações variadas. Nunca mais as universidades irão ter outra oportunidade para estudar comportamentos, individuais ou coletivos, economia e finanças, medicina e biologia, da genética à clínica. 

Nesta área, já são evidentes os estudos contraditórios, alguns publicados à pressa, sem evidência científica e sem revisão de pares.  

É sempre difícil para os cientistas assumirem que nada sabem e que precisam de tempo para compreender um vírus, de uma família conhecida, mas uma espécie de bastardo… 

Nunca foi tão atual a frase de Umberto Eco, na sua obra “Como Se Faz uma Tese em Ciências Humanas”, aqui livremente aplicada a todas as áreas do conhecimento. “Uma tese é como um porco, aproveita-se tudo”. 

Na saúde mental, os avisos chegaram cedo: isto vai originar um crescimento de doenças psiquiátricas, é preciso estarmos atentos ao que se vai passar. Várias instituições começaram a fazer inquéritos, de modo a perceber se estávamos a ter um aumento de sintomatologia ansiosa e depressiva. 

Apesar de as metodologias serem as possíveis – em grande parte questionários online, não controlados -, foi claro, no início, que os sintomas ansiosos aumentaram substancialmente, no que foram acompanhados, em menor escala, por sintomas depressivos. 

Estes inquéritos foram repetidos ao longo da pandemia. À medida que o tempo foi passando, a nossa capacidade de adaptação foi surgindo, e os sintomas diminuíram de intensidade e frequência. 

A previsão catastrófica que alguns fizeram não se concretizou. No entanto, como noutras especialidades médicas, houve uma diminuição assustadora de consultas, quer pela falta de recursos, quer pelo receio dos doentes em irem às consultas. Não temos uma avaliação fina destes valores, mas seguramente que não foi bom para os quadros depressivos e psicóticos, que precisam de acompanhamento frequente. 

Há muito que se conhece o excessivo consumo, em Portugal, de medicamentos psicotrópicos. Há anos que existe uma preocupação um pouco hipócrita. É mais barato pagar comprimidos do que pagar bons serviços de saúde mental. Se há um excesso de medicação é porque as consultas de Psiquiatria e de Psicologia no SNS são insuficientes. É muito mais rápido dar uma “pastilha” do que ter tempo para conversar com os doentes. E muitos só precisam de apoio psicológico. 

A crise vai doer nas almas, e as feridas não vão ser iguais para todos. O desemprego e a ausência de um mínimo de recursos financeiros é um preditor muito forte do agravamento da saúde mental. Quem clamou, e bem, por mais e melhores apoios na saúde mental tem agora a oportunidade de pôr em prática esta preocupação. 

Não temo que esta preocupação seja, mais uma vez, e passado o “entusiasmo pandêmico” pelo sofrimento psicológico, cativada. Poderemos então falar de entradas de leão e saídas de sendeiro … 

Para fazermos mais e melhor basta lembrar a frase de James Carville, na campanha de Bill Clinton, contra George Bush: “É a economia, estúpido”. 

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FONTE: GAMEIRO, José. É a economia, estúpido. In. E – A Revista do Expresso. Ed. 2487. Lisboa (Portugal), 27/06/2020, pág. 88.  (Diário de um Psiquiatra) 

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